No
final de 1984, o Congresso brasileiro aprovou a Política Nacional de
Informática, por meio da Lei nº 7232, de 29 de outubro. Durante 8 anos,
conforme previsão da lei, a indústria de informática no Brasil teria assegurada
a reserva de mercado para empresas de capital nacional, com vistas ao
desenvolvimento acelerado do setor. Antes mesmo dessa lei, desde pelo menos
1976, autoridades brasileiras já vinham tentando algumas formas de estímulo ao
crescimento da produção nacional de computadores e periféricos, que tinham se
tornado divisões muito importantes do setor industrial e afirmariam, em poucos
anos, a sua centralidade no plano econômico.
As
reações do governo dos Estados Unidos a esse ímpeto brasileiro não tardaram a
chegar. Deixando bem claro o quanto esse tema era sensível aos interesses
estadunidenses, autoridades dos altos escalões não se furtaram a criticar e
pressionar o governo brasileiro, incluindo o próprio chefe da Casa Branca. “Em
dezembro de 1982, quando visitou o Brasil, Ronald Reagan condenou a política
brasileira de informática. Dois anos depois, o secretário de Estado, George
Schultz, esteve aqui para discutir problemas do comércio bilateral e,
especificamente, o Plano Nacional de Informática, que transformaria no fim do
ano a reserva [de mercado] em lei.” (Jornal
do Brasil, 08 de setembro de 1985, p. 1 e 29)
Os
membros do Partido Democrata dos EUA pressionavam o governo Reagan a adotar
políticas protecionistas, alegando que a defesa do livre-comércio feita com
insistência pelo presidente deixava de considerar as graves perdas que vinham
sofrendo os trabalhadores norte-americanos, que viam seus empregos serem
dizimados no país, em grande medida pela concorrência acirrada das importações.
Embora reafirmasse continuamente as ameaças de retaliação contra parceiros
comerciais, Reagan mantinha-se aferrado à crença de que uma legislação
protecionista tendia mais a elevar preços, fechar mercados e eliminar empregos.
Um de seus mantras era este: “Não há vencedores em uma guerra comercial, apenas
perdedores.”
Mesmo
assim, no caso do Brasil o tratamento foi bastante incisivo. Menos de um mês
depois de ter liberado a importação de calçados brasileiros, o Presidente
Reagan instruiu o representante comercial dos Estados Unidos, Clayton Yetter, a
iniciar uma ação legal contra a política brasileira de reserva de mercado para
computadores. A ameaça era clara: se o Brasil não alterasse a sua política até
o mês de dezembro daquele ano, o governo dos EUA poderia aplicar uma lei de
1974, que lhe permitia suspender a importação de todos os produtos brasileiros.
Todos! À parte o imbróglio comercial envolvido, chama a atenção a simbologia de
uma decisão anunciada exatamente um dia depois (ou, quem sabe, no mesmo dia) da
comemoração da Independência do Brasil. A notícia da ameaça era publicada no
dia 08 de setembro de 1985.
O
Itamaraty soltou uma nota bastante ponderada, em que não deixou, contudo, de
manifestar a posição altiva do governo brasileiro, no sentido de defender e
justificar a política de informática adotada pelo país. Em duas passagens,
deixou isso bem claro:
“O governo brasileiro
lamenta profundamente a decisão do governo norte-americano sobre a política de
informática do Brasil. A aplicação da legislação nacional sobre informática
atende aos direitos nacionais de desenvolvimento tecnológico e não implica
práticas inaceitáveis de comércio, conforme amplamente exposto pelo nosso
governo no âmbito do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio — GATT.
O governo brasileiro
confia em que o governo norte-americano terá presente, na evolução da matéria,
os interesses mais amplos do relacionamento bilateral, os quais sempre
prevaleceram sobre divergências comerciais ocasionais e não compreende a
posição adotada, no momento em que o Brasil desenvolve um intenso esforço para
ampliar as suas áreas de comércio internacional e estabilizar sua economia
interna.” (Jornal do
Brasil, 08 de setembro de 1985, p.29)
Ao
mesmo tempo, o setor empresarial também se mobilizou para emitir notas de
esclarecimento quanto à posição a ser adotada diante da ameaça. O diretor de
comércio exterior da Federação das Indústrias de São Paulo (FIESP), Jamil Aun,
destacou que a posição do Presidente Reagan deveria ser respeitada, mas não
servia para o Brasil. “O governo dos Estados Unidos insistirá eternamente na
retirada das barreiras protecionistas à indústria de informática nacional”,
afirmou. No entanto, “o Brasil não deve se fechar para a entrada de novas tecnologias
estrangeiras. Mas, tem que existir salvaguardas que permitam a continuidade do
desenvolvimento da nascente indústria nacional de informática”, concluiu. (idem)
Um
empresário ligado à Associação Brasileira de Indústrias de Computação e
Periféricos (Abicomp) disse também que o pronunciamento do Presidente Reagan já
era esperado, principalmente, após o anúncio da sua posição liberalizante sobre
os calçados. “Uma mão dá cá, outra mão toma lá.” Ou seja, qualquer um poderia
pensar que a liberação da entrada dos calçados brasileiros nos Estados Unidos
seria utilizada como moeda de troca para exigir a abertura do mercado interno
do Brasil para os produtos da indústria de informática dos EUA.
De
fato, o debate sobre a importação de calçados pelos Estados Unidos foi bastante
acirrado ao longo de meses. Havia forte pressão do próprio setor calçadista
interno para a elevação de barreiras protecionistas, mas este acabou perdendo a
batalha. Prevaleceu a visão defendida pelo Presidente Reagan, que rejeitou a
imposição de cotas de importação para calçados não feitos de borracha, cuja
indústria estadunidense não se mostrava a mais competitiva. Embora tivesse de
enfrentar a raiva dos fabricantes locais e dos sindicatos da categoria, ele
preferiu manter a posição de “defesa plena do livre-comércio” e dos direitos do
consumidor norte-americano. E discursou assim:
“Não há também motivo
para crer que as cotas ajudarão a indústria a se tornar mais competitiva. Entre
1977 e 1981, os fabricantes de calçados dos Estados Unidos receberam proteção
contra as importações estrangeiras, mas saíram desse período ainda mais vulneráveis
do que antes à competição internacional.
Se nossos parceiros
comerciais não puderem vender calçados nos Estados Unidos, muitos deles não
terão condições para pagar as exportações norte-americanas. Isso significará
maior perda de empregos nos Estados Unidos. Dessa forma, constatamos que o
verdadeiro preço do protecionismo é, na realidade, muito elevado. Para salvar
alguns poucos empregos temporários, estaremos tirando muitos outros
norte-americanos do trabalho, obrigado.” (Jornal do Commercio, 29 de agosto de
1985, p.8)
É
claro que o setor industrial não era um bloco monolítico, nos Estados Unidos,
como de resto nunca foi também em nenhum país do mundo industrializado. Havia
contradições, segmentos mais dinâmicos do que outros, atividades de vanguarda e
outras em declínio, o que tornava a administração de uma política de comércio
internacional uma tarefa bastante complexa e delicada, sujeita a fortes embates
políticos. Eram inúmeros os fatores a se considerar: emprego, renda, balança
comercial, competitividade, produtividade, e assim por diante. Para os países
em desenvolvimento, como era o caso do Brasil, o problema tendia a se tornar
ainda mais intrincado, tendo em vista a sua dependência do comércio exterior
como fator essencial da geração de divisas, das quais dependia tanto o
pagamento da dívida externa quanto a aquisição das importações. Aqui também os
embates políticos jogavam um papel essencial no equilíbrio de forças que
delimitava a extensão das medidas protecionistas possíveis.
Por
isso mesmo, o episódio da reserva de mercado para a indústria de informática
tem tanta relevância, inclusive para expandir o debate sobre a questão da
soberania do Brasil, que se tornou, hoje, um dos temas mais delicados. É
interessante observar que as autoridades brasileiras da época responderam de
modo bastante incisivo e soberano às tentativas de intimidação por parte de
autoridades estadunidenses que pressionavam o país a rever, sobretudo, a
política de informática. Logo em seguida às declarações do Presidente Reagan,
que soaram como ameaça clara à soberania nacional, o ministro da Ciência e
Tecnologia, Renato Archer, anunciou que o governo brasileiro não iria propor
nenhuma mudança na legislação vigente sobre a reserva de mercado em informática.
E disse ainda que, se algum parlamentar fizesse qualquer proposta neste
sentido, no Congresso Nacional, os líderes governistas lutariam fortemente
contra a iniciativa. Essa declaração foi dada logo após uma reunião com o
Presidente José Sarney e com os ministros da Indústria e Comércio, Roberto
Gusmão, e das Relações Exteriores, Olavo Setúbal. (Jornal do Commercio, 10 de setembro de 1985, p.9)
No
mesmo dia, a imprensa noticiava que um grupo de deputados e senadores começava
a articular com o governo para recriar a Frente Parlamentar Nacionalista, que
há 30 anos mobilizara o Brasil na campanha “o petróleo é nosso”. O deputado
Arthur Virgílio Netto, representando um grupo de parlamentares, informou que já
tinham uma reunião agendada com o ministro Archer e depois seguiriam para se
encontrar com o presidente da Câmara dos Deputados, Ulysses Guimarães. “E
fundamental que o Congresso tome esta bandeira da informática e dê toda
sustentação ao Governo Sarney na questão, pois essa foi apenas a primeira
investida, um balão de ensaio. E, para a nossa geração, a reserva de mercado em
informática é tão importante como a criação da Petrobrás o foi nos anos 1950”,
justificou Arthur Virgílio. (idem)
O
mesmo jornal reportou que lideranças do PMDB e do PFL protestaram no Congresso
contra o presidente estadunidense. Nos meios empresariais também houve reações
enérgicas às ameaças de Reagan. “Achei as declarações do presidente Reagan
raivosas e inconsequentes”, disse o presidente do Banerj, ex-presidente da
Cobra Computadores, a empresa brasileira de informática. O presidente da
Sociedade Brasileira de Computação também afirmou que a informática
representava um dos setores mais estratégicos da economia de um país e qualquer
um que deixar de construir a sua própria capacitação tecnológica estará fadado
a uma eterna dependência. Em sua opinião, a lei nº 7232, criadora da reserva de
mercado, era um caso de sobrevivência. “É dever de uma nação proteger as suas
indústrias nascentes.” (idem)
Dias
depois, os jornais voltaram a mencionar o recrudescimento das pressões dos
Estados Unidos para o afrouxamento da reserva de mercado brasileira para a
indústria de informática. O subsecretário de comércio dos Estados Unidos,
Clarence Brown, deixou claro em seu pronunciamento na IV Semana Rio
Internacional que o governo do seu país poderia impor novas restrições à
importação dos calçados brasileiros, caso não fosse permitida a entrada aqui de
produtos de informática estadunidenses. No mesmo evento, o representante dos
EUA para o comércio exterior com a América Latina, John Rosenbaum, sempre com
muita ironia, indagou aos presentes: “O que eu não compreendo é por que o
Brasil quer reinventar a roda? Por que não se vale do progresso já realizado
pelos países desenvolvidos?” (Jornal do
Commercio, 25 de outubro de 1985, p.6)
Ou
seja, por que o Brasil quer desenvolver a sua própria indústria de informática,
se pode comprar todos os produtos fabricados pela indústria dos Estados Unidos,
e assim abrir mão de participar ativamente de uma das atividades produtivas
mais importantes do mundo atual?! Por que o Brasil insiste em abandonar a sua
condição de país dependente, partindo para uma autonomia tecnológica que lhe
garanta uma soberania cada vez mais sólida?! Por que o Brasil almeja
conhecimento técnico superior que lhe permita ombrear em condições de igualdade
com todos os seus parceiros comerciais?!
Nesse
mesmo contexto de pressões de toda ordem, duas associações empresariais dos
Estados Unidos dos setores de eletrodomésticos e de informática, formalizaram
oito acusações contra o governo brasileiro junto ao United States Trade
Representative, por aquilo que consideraram “prática de medidas restritivas às
atividades das empresas estadunidenses no mercado brasileiro”. Segundo o
documento que formularam, pelo artigo 301, introduzido em janeiro daquele ano
na lei do país, o presidente passara a ter poderes para adotar unilateralmente
a retaliação contra países que prejudicassem as atividades das empresas
norte-americanas no exterior. Ambas associações demonstraram temor de que
houvesse “estímulo a atitudes semelhantes em outras nações, que viessem a lesar
de modo sensível o sistema de comércio multilateral”. (Jornal do Brasil, 17 de outubro de 1985, p.23)
Além disso, as duas associações em questão também tentavam fazer com que a questão se resolvesse nos termos das negociações bilaterais e não fosse levada ao GATT, como pretendiam as autoridades brasileiras. O principal argumento invocado pela defesa das indústrias brasileiras de informática, segundo a Abicomp, era a permissão do GATT para que os países em desenvolvimento protegessem temporariamente as áreas nascentes de tecnologia, pois a indústria de informática se enquadrava perfeitamente nessa categoria. (idem)
O
desfecho fica mesmo a cargo do embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Diego
Ascensio, que qualificou de “burrice” as declarações do representante
norte-americano para o comércio exterior com a América Latina, de que a lei
brasileira de informática deveria ser modificada por “ser protecionista”. Em
sua conferência de encerramento do painel sobre comércio bilateral Brasil-EUA,
na parte final da IV Semana Rio Internacional, no Copacabana Palace, Ascensio
afirmou que “quando um americano critica a Lei de Informática brasileira apenas
reforça os supernacionalistas que se envolvem na bandeira para falar no assunto”.
(Jornal do Commercio, 26 de outubro
de 1985, p.6)
Ou
seja, segundo o embaixador, “era melhor não dizer nada”, para não avivar o
espírito nacionalista dos brasileiros, para não incitar o apelo à soberania
nacional, para não exacerbar a indignação contra a interferência descarada de um
governo estrangeiro nos rumos da economia do país. Ao dizer com ironia que os
nacionalistas se enrolavam na bandeira para defender os seus direitos diante
das pressões externas contra a própria soberania, demonstrou todo o menosprezo
que guardava pelo esforço do governo brasileiro para impulsionar uma das
atividades industriais mais dinâmicas do mundo.
A
lei acabou sendo modificada em 1992, quando expirou finalmente o prazo de
vigência da reserva de mercado, estipulado em oito anos. Era outro contexto
geopolítico, era outra perspectiva. O que se perdera de mais importante fora
justamente esse espírito de luta, essa força de vontade para vencer o atraso e redimir
uma nação em busca do próprio sentido. Hoje, quando vemos o Brasil sendo
dilapidado em suas riquezas e em sua soberania, é impossível não sentir
profunda nostalgia por uma época em que, bem ou mal, os brasileiros defendiam o
próprio destino.
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