Moradia como direito (?)

Há alguns dias, fomos surpreendidos de forma trágica com o desabamento de um edifício no centro de São Paulo, que havia sido transformado numa ocupação irregular, por inúmeras famílias de trabalhadores sem teto, vinculados a movimentos que lutam pela moradia como um direito social inalienável. Não faltaram comentários nas redes sociais e reportagens na mídia, em geral, para classificar a ocupação como uma irresponsabilidade e uma afronta ao (‘sagrado’) direito de propriedade, resguardado pela Constituição Federal. Há uma dificuldade imensa, no Brasil, para difundir a noção de função social da propriedade ou o princípio do direito universal à moradia, igualmente previstos na lei geral do país. A bem da verdade, a Constituição de 1988, ora em vigor, também conhecida como ‘constituição cidadã’, faz a previsão de diversos direitos sociais que ainda estão por ser realmente usufruídos pelo conjunto da população. Apesar disso, e mesmo com tamanhas discrepâncias no acesso aos bens e serviços de cunho social, observa-se aqui e ali um sem número de queixas e críticas sobre a mesma carta magna, vista por muitos como um empecilho à adoção de medidas ‘modernizadoras’.

Pois bem, o que se percebeu pelas notícias produzidas acerca do desabamento em São Paulo foi que a maioria dos habitantes daquele prédio era formada por trabalhadores pobres, cujos rendimentos não são suficientes para cobrir despesas correntes com aluguel e demais gastos cotidianos. Ganham pouco e não conseguem dinheiro bastante para fazer frente às necessidades mais elementares da vida em sociedade. Quem quer que tenha um teto sabe como é custoso adquirir e manter uma casa para morar. Não só a montagem de uma residência é dispendiosa, como a sua manutenção e preservação são também onerosas e constantes, é preciso gastar o tempo inteiro. A questão que se coloca para os ex-moradores do prédio que desabou é a seguinte: como providenciar uma nova moradia nas condições socioeconômicas em que vivem?

Uma resposta adequada a essa questão envolveria, necessariamente, o compromisso do poder público nas suas várias instâncias: municipal, estadual e federal. Quais são os programas habitacionais voltados para a população de baixa renda que estão sendo efetivamente desenvolvidos? Qual é o real tamanho do déficit de moradias atual? Qual é a disponibilidade orçamentária destinada à produção de habitações populares? Que cidades nós queremos construir para o futuro? No caso presente, passados alguns dias da tragédia, o que se vê é que a população desabrigada continua, em grande parte, jogada na rua, sem ter para onde ir, sem ter como resolver o seu drama. A lentidão do poder público na solução do problema é apenas uma das facetas do descalabro administrativo que cerca o déficit habitacional brasileiro.

Ainda assim, é preciso admitir que as determinações da Constituição de 1988 produziram mudanças significativas nas perspectivas adotadas para o problema. Até aquele momento, sequer se cogitava uma obrigação fundamental do poder público, no sentido de prover as condições mínimas de moradias dignas à população trabalhadora de baixa renda. Hoje, essa obrigação existe, ainda que não seja cumprida. O máximo que se conseguia prever, anteriormente, eram ações pontuais destinadas a erradicar a ‘mendicância’ nas cidades, todas as vezes que a população moradora das ruas e praças das cidades começava a ultrapassar os limites habituais consagrados pelo quadro secular de miséria e abandono. O destino dado aos excluídos eram os hospitais, os manicômios, os abrigos ou as ‘fazendas modelos’, onde trabalhariam em hortas e oficinas.

Não faltam episódios que refletem a absurda tolerância que sempre existiu nas cidades brasileiras, quanto à existência de milhares de pessoas impossibilitadas de conseguir um teto e de viver com um mínimo de dignidade. Começava o ano de 1984, por exemplo, e o Rio de Janeiro se via novamente às voltas com o aumento exponencial da quantidade de moradores de rua. As pressões aumentavam sobre o poder público e o jornal anunciava o início de operações destinadas a enfrentar o problema:

O Governador Leonel Brizola mandou antecipar as providências para resolver o problema dos mendigos na cidade e o Prefeito Marcelo Alencar anunciou para hoje o início da Operação Cata-Mendigo. Primeiro, várias equipes farão advertência contra a ocupação ilegal de logradouros públicos. Os reincidentes serão recolhidos. Os doentes serão encaminhados para tratamento; aos sadios, caberá produzir hortaliças, limpar terrenos para plantio ou trabalhar na Comlurb, sem vínculo empregatício com a empresa, mas com remuneração e alimentação. (Jornal do Brasil, 6 de janeiro de 1984, p.1 e 7)

Entre todas as medidas anunciadas pela nova operação posta em prática, nenhuma delas indicava a preocupação de construir habitações condignas para essa população marginalizada. Previa-se a sua retirada das ruas, o seu encaminhamento para tratamento médico ou hospitalar, o seu aproveitamento em tarefas voltadas para o serviço público de limpeza da cidade, mas nada destinado a oferecer-lhe uma casa para morar. Parecia que esse problema não pertencia à esfera pública, e foi preciso que a constituição cidadã viesse alertar os brasileiros para essa obrigação elementar do Estado em relação aos seus cidadãos. Algo que, como tanto já se cansou de dizer, todos os países ditos desenvolvidos tiveram de fazer um dia para que a sua aparência fosse cada vez mais a de uma sociedade civilizada.

No Brasil, a maioria se habituou à experiência de favelização e de ‘periferização’ das suas cidades, grandes, médias e até mesmo pequenas. O clamor, quando houve, não foi para a construção de moradias decentes para os trabalhadores pobres, mas, para a sua eliminação do cenário urbano, o seu deslocamento para localidades cada vez mais distantes, o seu afastamento do convívio elegante e pródigo dos espaços urbanizados.

“No início da Operação de Recolhimento da População de Rua, ontem à noite na Zona Sul, a Prefeitura não achou nenhum mendigo típico. Encontrou sobretudo subemprego, doença, alcoolismo, soluções arquitetônicas originais e uma surpreendente lucidez das pessoas abordadas. (Jornal do Brasil, 10 de janeiro de 1984, p.8)

Um dos primeiros habitantes das ruas abordado nessa operação foi um senhor aposentado, que vivia dentro de um Ford Galaxie abandonado no Jardim de Alá, situado na divisa entre os bairros de Ipanema e Leblon. Ele conseguiu escapar da ação dos fiscais porque comprovou, com sua carteira de trabalho, que era aposentado e recebia regularmente o seu benefício. Então, foi deixado em paz. Outros não tiveram a mesma sorte. José Gomes Filho, um ex-mestre de obras vitimado por um acidente de trabalho, vivia com a mulher e a filha num casebre montado com todo capricho por ele próprio, que não resistiu à ação da fiscalização e foi derrubado. “Na sala havia tapete, mesa com toalha, reservatório de água, flores e um sofá. No quarto, um outro sofá e o berço laranja do bebê, com um móbile no meio.” (idem)

Era mais uma família destinada à assistência social precária. Em poucos dias, o assunto sumiu do jornal, deixara de ser novidade. O destino daquelas pessoas, como se pode perceber nas atuais condições sociais do Brasil, entrara para a ‘dívida ativa da União’. E só se voltaria a falar delas quando, mais algumas vezes, o seu total desamparo deixasse de ser invisível. Como acontece numa tragédia de grande impacto.

http://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2018/05/familias-abandonada-uma-semana-depois-da-tragedia-do-paissandu